Carta Aberta ao Representante Especial da ONU sobre as Empresas e os Direitos Humanos - 2007

Professor John Ruggie
Special Representative on Human Rights and Transnational
Corporations and other Business Enterprises
Office of the High Commissioner for Human Rights
Palais des Nations
8-14 Avenue de la Paix
1211 Geneva 10
Switzerland

 

10 de outubro, 2007

Prezado Professor Ruggie*,

Estamos escrevendo para compartilhar nossa visão de como o senhor pode promover mais efetivamente a proteção dos direitos humanos no contexto das atividades empresariais durante o restante de seu mandato como Representante Especial das Nações Unidas sobre as empresas e os direitos humanos.

Nós trabalhamos para prevenir a ocorrência de abusos dos direitos humanos envolvendo empresas e para promover a justiça para as vítimas de tais abusos. Nossas organizações e grupos sociais compartilham seu desejo de ver um fim nos abusos dos direitos humanos envolvendo empresas. É sobre este ângulo que oferecemos nossa perspectiva comum sobre diversas questões. Mencionamos, em particular, quatro tópicos que, em nosso entender, merecem prioridade em seu trabalho, de acordo com seu posto de expert independente de um órgão internacional com alcance global e um mandato abrangente e explícito nos direitos humanos. Especificamente, esperamos que como Representante Especial servindo o Conselho de Direitos Humanos da ONU, o senhor:

  • ajudará a aprofundar na ONU o foco em situações concretas relacionadas aos direitos humanos e empresas, especialmente em relação à perspectiva das vítimas, de modo a ilustrar o alcance e a natureza dos abusos;
  • analisará os fatores que têm levado Estados a falharem no cumprimento adequado de sua obrigação de proteger os direitos humanos de indivíduos, comunidades e povos indígenas;
  • avaliará a limitação inerente às iniciativas voluntárias, de modo a evitar um excesso de dependência em tais iniciativas  e
  • ajudará a aumentar a conscientização sobre a necessidade premente de que padrões globais sobre empresas e direitos humanos sejam delineados numa Declaração das Nações Unidas ou instrumento similar adotado pelos Estados membros.

Elaboramos nossos pontos de vista sobre cada um destes tópicos abaixo e também incluímos propostas para recomendações que poderiam ser incluídas em seu relatório final para o Conselho de Direitos Humanos.

Em nosso mundo globalizado, as empresas são atores muito poderosos que podem causar impactos tanto positivos quanto negativos nos direitos humanos de indivíduos, comunidades e povos indígenas. Os impactos negativos causados por empresas são amplamente difundidos, e afetam toda a gama de direitos humanos, não se limitando a países, indústrias ou contextos específicos. Como o senhor corretamente reconheceu, a expansão dos mercados globais não foi acompanhada por proteção suficiente para os povos e comunidades que são vítimas de tais abusos dos direitos humanos. Em muitos casos, os abusos cometidos por empresas ocorrem num vácuo de proteção dos direitos humanos, no qual governos falham em tomar as medidas adequadas para a prevenção de abusos e os perpetradores não são responsabilizados, e nos quais os obstáculos para à justiça se somam aos abusos originais impedindo que vítimas tenham direito a uma alternativa e à uma reparação efetivas. Acreditamos que vários fatores contribuem para esta situação e precisam ser abordados.

Primeiramente, vítimas de abusos dos direitos humanos cometidos por, ou envolvendo, empresas não têm voz ativa em debates sobre empresas e direitos humanos. As discussões sobre este tema tendem a concentrar-se em conceitos abstratos ao invés do impacto concreto causados por condutas corporativas  nos direitos humanos de indivíduos, comunidades e povos indígenas. Nós acreditamos que a perspectiva das vítimas requer maior ênfase e elaboração no estágio final de seu mandato e em seu relatório final para o Conselho de Direitos Humanos em 2008. É essencial que as discussões do Conselho sobre empresas e direitos humanos sejam centradas nas experiências daqueles que são afetados por abusos dos direitos humanos cometidos por empresas e informados por um entendimento a respeito da natureza, escala e padrões de tais abusos. Isso garantirá uma análise completa do problema e a identificação de soluções significativas.

Acreditamos que o Conselho de Direitos Humanos da ONU deveria adotar um novo ou renovado mandato para um mecanismo especial (por exemplo, um expert independente ou grupo de especialistas) sobre direitos humanos e empresas. Este procedimento deveria ter um maior alcance para pesquisar e analisar padrões de abusos dos direitos humanos cometidos por empresas relacionados a situações reais, para realizar visitas de campo, para receber comunicações individuais de vítimas sobre abusos de direitos humanos e de defensores de direitos humanos atuando em seu nome, para elaborar recomendações para Estados e companhias e para contribuir com o desenvolvimento conceitual neste campo. Tais funções constituem o trabalho nuclear de outros mecanismos temáticos estabelecidos no sistema ONU dos direitos humanos. Agradeceríamos seu apoio público à criação de tal mandato e temos esperanças de que o senhor incluirá esta opção entre suas recomendações ao Conselho. Sendo assim, gostaríamos de deixar clara a necessidade premente de um mandato deste tipo e da recomendação que o Conselho aja sem demora para sua criação.

Neste ínterim, acreditamos que nos estágios finais de seu mandato, o senhor pode fazer muito para garantir que vítimas de abusos dos direitos humanos envolvendo companhias tenham voz no Conselho de Direitos Humanos. Gostaríamos de incentivá-lo, em particular, a aumentar seus esforços para comunicar-se com as comunidades afetadas, incluindo-se através de visitas a estas comunidades e reuniões regionais. Esperamos que o senhor possa apresentar os resultados destas visitas e consultas em seu relatório final, tanto para garantir que sua própria análise do resultado destas visitas seja evidente em seu relatório e, onde possível, anexar documentos relevantes oriundos destas consultas. Nossos grupos e organizações, que incluem organizações de base e organizações de povos indígenas, estão muito interessados em encontrá-lo e  enviar mais documentação sobre abusos corporativos. Nós também recomendamos que se solicite comentários e contribuições de indivíduos, comunidades e povos indígenas diretamente afetados pelos abusos dos direitos humanos cometidos por empresas, e também de organizações de direitos humanos que têm realizado pesquisas de campo sobre tais abusos. Este diálogo servirá para testar como estas recomendações iniciais abordariam positivamente a situação das vítimas destes abusos.

Além disso, nós acreditamos que seria proveitoso aprofundar sua análise e reflexão sobre a natureza e alcance dos abusos dos direitos humanos ocorrendo ao redor do mundo com o envolvimento de empresas, e refletir esta análise em seu relatório final. Agradecemos sua coordenação com outros mecanismos especiais na coleta de informações sobre casos baseados em suas pesquisas de campo, assim como seu recente anúncio de que realizará um mapeamento dos abusos cometidos por empresas em resposta às informações recebidas de ONGs. Em geral, acreditamos que a utilidade, precisão e legitimidade de seu relatório final, assim como o apoio às suas recomendações, seriam enormemente fortalecidos se suas conclusões e recomendações fossem mais explicitamente baseadas em fatos, testemunhos e análise de casos de violações de direitos humanos envolvendo corporações. Também agradecemos seus recentes esforços para coletar informações sobre questões de acesso à justiça, e acreditamos que será importante incorporar um exame das barreiras práticas à obtenção de justiça, e da negação do direito a um remédio efetivo incluindo reparações, enfrentado pelas vítimas. Muitas de nossas organizações têm produzido relatórios que abordam estas várias questões e continuaremos a informá-lo sobre qualquer nova publicação que possa ter relação com seu trabalho.

Em segundo lugar, os Estados frequentemente falham no contexto de abusos dos direitos humanos envolvendo empresas, ao impor suas obrigações de proteger contra abusos dose direitos humanos. Seu último relatório corretamente enfatiza esta obrigação, e a resultante necessidade de que os Estados regulem as atividades de empresas e de empregados individuais de modo a prevenir os abusos dos direitos humanos e impor sanções ou resolver denúncias na ocorrência destas. Agradecemos também seus planos de dedicar mais atenção a esta questão crítica nesta fase final de seu trabalho e em seu relatório final. Durante o tempo restante de seu trabalho, esperamos que o senhor possa avançar a consideração desta questão através de análise da prática corrente dos Estados em relação a abusos corporativos de direitos humanos. Tal avaliação trataria de algumas razões pelas quais os Estados têm falhado em implementar seu dever de proteger dentro de sua jurisdição (como por exemplo, falta de compreensão, falta de capacidade, falta de vontade política, os fatores que levam à falta de vontade política e quaisquer outras razões relevantes). Esta análise também poderia delinear as conseqüências destas falhas e fazê-lo em referência a casos concretos de abusos. Em nossa visão, tal análise representaria uma importante contribuição para avançar o entendimento de como o dever de proteger dos Estados é implementado na prática, assim como sugerir os próximos passos necessários para reforçar os mecanismos domésticos de responsabilidade para garantia dos direitos humanos. Neste sentido, fornecerá uma base sólida para qualquer recomendação nesta área, assim como promoveria a base inicial para trabalhos adicionais no contexto de um novo mandato de mecanismos especiais.

Em terceiro lugar, apesar do reconhecimento crescente de que, assim como outros atores sociais, as empresas têm no mínimo a responsabilidade de evitar danos que evitem o cumprimento dos direitos humanos,  muitas empresas têm falhado em cumprir estas obrigações básicas e consistentemente fogem desta responsabilidade. Os Estados têm a responsabilidade primária de acordo com o direito internacional, mas isto não significa que outros atores estejam, ou deveriam estar, livres de qualquer responsabilidade direta sobre direitos humanos. O papel do direito internacional dos direitos humanos é o de limitar e governar o exercício do poder. O direito internacional dos direitos humanos deve continuar a desenvolver-se para fazer frente ao crescente poder de outros atores além dos Estados, para causarem impacto na habilidade dos indivíduos, comunidades ou povos usufruírem de seus direitos humanos.

Não obstante, as responsabilidades de empresas em relação aos direitos humanos têm sido em grande medida tratadas com a adoção de códigos de conduta e de medidas voluntárias e geralmente no âmbito de companhias ou indústrias, e algumas vezes reforçados com iniciativas multi-setoriais que incluem governos e organizações não-governamentais. Ao passo que estas iniciativas podem ter um papel válido no contexto das empresas e direitos humanos, como por exemplo, ao dar visibilidade e estabelecer condutas em certas áreas especificas, elas têm limitações sérias e inerentes. Iniciativas voluntárias têm seu âmbito limitado em termos dos direitos incluídos e dos setores cobertos. Muitas empresas decidem não fazer parte de qualquer iniciativa voluntária. Em função de sua natureza voluntária, elas tipicamente falham em garantir que os princípios por elas defendidos sejam implementados na prática; mesmo as iniciativas multi-setoriais mais robustas ficam muito aquém do que é necessário para garantir cumprimento. Ademais, estes alardeados princípios são concebidos de maneira muito restritiva, são inconsistentes quando comparados com diferentes iniciativas, e aplicados de maneira desigual. Estas iniciativas tampouco requerem que todas as companhias respeitem todos os direitos humanos, mas permitem a elas “optarem” por parâmetros que lhes sejam convenientes, e de não aplicarem os parâmetros que não lhes são convenientes. Desta maneira, elas contradizem o conceito de direitos humanos como garantias mínimas para o tratamento de todas as pessoas, e elas não provêem uma base adequada para tratar de questões de direitos humanos e empresas. Em seu relatório final para o Conselho de Direitos Humanos, pedimos que o senhor especifique os limites para a “auto-regulação” mencionados acima. Ações diversas são necessárias para melhorar a conduta das empresas em relação aos direitos humanos, mas confiar excessivamente em iniciativas voluntárias – particularmente aquelas que são incompatíveis com princípios de direitos humanos – não representaria um bom caminho adiante.

Em quarto lugar, nós consideramos que parâmetros inter-governamentais sobre empresas e direitos humanos são necessários para fortalecer a proteção dos direitos humanos e fornecer um quadro comum para os esforços realizados em relação à conduta empresarial. Nós portanto gostaríamos de ver sua afirmação pública sobre a necessidade de estes parâmetros. De fato, é nosso ponto de vista que existe hoje uma necessidade concreta de se trabalhar com governos para construir seu apoio para a eventual negociação e adoção de uma declaração no âmbito da ONU ou um instrumento similar detalhando parâmetros para a questão de empresas e direitos humanos. Consideramos que o senhor pode fazer uma importante contribuição nos meses restantes de seu mandato, para aumentar a conscientização da necessidade de um instrumento como este. Esperamos que o senhor ofereça apoio público para o início de um processo que pode levar à adoção de um instrumento a nível inter-governamental.

Para este fim, oferecemos nossa visão sobre os elementos essenciais que deveriam constar numa declaração ou instrumento similar de modo a promover a proteção dos direitos humanos. Acreditamos que tal instrumento deveria ter como base o axioma de que todos os seres humanos têm direitos iguais e inalienáveis em virtude de sua dignidade inerente, tendo  o direito a usufruir integralmente destes direitos, lembrando o princípio fundamental de que estes direitos são indivisíveis e inter-relacionados. Esta declaração deveria especificar e desenvolver progressivamente as obrigações dos Estados de proteger os direitos humanos no contexto das atividades econômicas, tanto na esfera doméstica quanto em sua atuação internacional. Deveria também especificar e desenvolver aspectos sobre a responsabilidade das empresas quanto aos direitos humanos ao estabelecer um parâmetro comum para todas as companhias, não obstante o setor ou contexto específicos onde operam. O texto deveria, no mínimo, declarar que todas as empresas deveriam respeitar todos os direitos humanos, e que em algumas circunstâncias – incluindo o exercício de funções públicas – um parâmetro mais alto será apropriado. Isto garantirá de que tal instrumento aborde a multiplicidade de maneiras em que as empresas podem envolver-se em abusos dos direitos humanos, incluindo-se através da cumplicidade nas ações de terceiros. O instrumento deve tratar sobre o acesso à justiça para as vítimas no contexto de empresas e direitos humanos ao afirmar que todas as vítimas têm direito a um remédio efetivo, incluindo-se reparação, e que os Estados deveriam exercer sua jurisdição para garantir que este direito e seus efeitos.

Como o senhor tem conhecimento, é necessário muito cuidado para que um processo destinado a elaborar e adotar um instrumento como indicamos acima servirá de fato ao propósito de fortalecer a proteção dos direitos humanos. O processo deve ser dirigido para a elaboração de um instrumento autoritativo através de um processo inter-governamental. Ele deve ser informado por estudos de caso muito bem pesquisados e documentados, que dêem o devido peso à experiência e a perspectiva das vitimas de abusos e portanto sirva para estabelecer porque é necessário tomar uma ação. Há riscos reais de que uma iniciativa para definir padrões poderia ser contraproducente, a menos que estas e outras condições sejam garantidas. Por exemplo, um processo mal concebido poderia resultar num padrão internacional que falhe em fazer face às necessidades das vítimas se faltarem a necessária legitimidade e autoridade, não atingirem suficiente apoio político, ou forem substancialmente limitadas em sua cobertura (como por exemplo, tratando de apenas alguns direitos humanos, ou certas indústrias, ou contextos específicos). Entretanto, com o cuidado que tal processo requer, estes perigos podem ser evitados, e acreditamos que tal instrumento, negociado e adotado em nível intergovernamental, forneceria um claro ponto de referência sobre empresas e direitos humanos ao delinear padrões dignos de crédito e legítimos, acordados pelos Estados. Novamente, esperamos que o senhor apóie estes esforços para o início deste processo e, em particular, lhe pediríamos que incluísse uma declaração sobre a necessidade de tal instrumento como este entre suas recomendações em seu relatório final.

Esperamos discutir nossas propostas com o senhor o mais breve possível.

 

Atenciosamente,


[Ver as assinaturas no documento em anexo.]


*  Somente a versão inglesa é oficial.

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